Um defeito de cor: a história contada do ponto de vista negro

 


Resenha do livro ‘Um defeito de cor’, de Ana Maria Gonçalves

Quantas vezes já ouvimos falar da história da escravidão? Pra falar a verdade, poucas foram as vezes que ouvi falar da escravidão na época da escola. Era uma aula sobre isso e depois os professores partiam para falar sobre assuntos que eles consideravam mais importante. E quando falavam sobre esse período tão vergonhoso para a história do mundo – principalmente a do Brasil –, na maioria das vezes era do ponto de vista do colonizador.

Confesso que ao longo dos anos evitei ler histórias e relatos da escravidão, porque é doloroso demais. Contudo, ‘Um defeito de cor’ atravessou meus caminhos e não consegui deixar para depois, quando eu estivesse preparada. E quando li o livro entendi que eu jamais estaria preparada para uma história com tamanha profundidade e riqueza de detalhes. ‘Um defeito de cor’ não é uma história sobre a escravidão e sim a história de uma mulher negra que conseguiu resistir à essa política perversa de exploração de corpos negros.

Sempre tive vontade de ler o livro de Ana Maria Gonçalves e quando vi uma promoção na internet resolvi comprar. Ele ficou ali no cantinho por algumas semanas até eu decidir encará-lo como um desafio. Afinal, 952 páginas não são para qualquer um, seria uma leitura intensa. Mas encarei e, após cerca de cinco meses de leitura, não me arrependi. Na verdade me sinto grata por ter a oportunidade de ler essa história.

Antes de começar, de fato, a falar sobre a história, já aviso que conterá alguns spoilers (não muito graves), pois não teria como descrever o a importância desse livro sem comentar sobre alguns detalhes.

A história segue, desde a infância, Kehinde – que corresponde à heroína negra Luísa Mahin e possível mãe do advogado e poeta abolicionista Luiz Gama –, uma jovem negra que morava em Savalu, reino de Daomé e atual Benin. Alguns acontecimentos iniciais obrigam a personagem a se mudar para Uidá e é lá onde ela e a irmã gêmea, Taiwo, são sequestradas e colocadas à bordo do navio negreiro. Desesperada, a avó decide embarcar junto com as crianças e, a partir de então, temos relatos tristes e revoltantes sobre o quanto a experiência do navio negreiro foi degradante.

Corpos negros aglomerados, jogados de qualquer jeito e sem nenhuma condição de saúde ou higiene; expostos a qualquer tipo de doença e sem direito à alimentação e água potável. Uma das características mais fortes da escrita de Ana Maria Gonçalves é a riqueza de detalhes, e ela não poupa nenhum. Já no início do livro me vi chorando de soluçar ao ler as condições em que os africanos, de várias etnias, eram submetidos. Qualquer reclamação ou demonstração de descontentamento com a situação desumanizadora era motivo para agressões e até assassinatos. Eles realmente não davam (e até hoje não dão) valor algum à vida negra.

Kehinde desembarca sozinha no Brasil, pois a avó e Taiwo não sobreviveram à travessia, vítimas de uma doença que assolou grande parte das pessoas que haviam sido sequestradas de África. Criança e sem entender direito o que estava acontecendo, ela fugiu do batismo na religião católica e se recusou a abrir mão do seu nome de origem. Kehinde foi vendida em terras brasileiras e comprada pelo senhor de uma fazenda na Ilha de Itaparica, na Bahia, onde viveu sua infância e adolescência e onde também foi abusada, explorada e estuprada pelo senhor. Foi então que ela teve seu primeiro filho, Banjokô.

O contato da protagonista com as suas origens e ancestralidade faz com que a autora se aprofunde em temáticas religiosas, mostrando a relação de Kehinde com a religião de sua avó, a que ela era mais próxima; mas também a relação dela com várias outras religiões comuns em África. Ao longo da história também percebemos o quanto Kehinde é singular, conseguindo sentir respeito e admiração por diversas outras religiões além da sua. Em alguns momentos, o leitor também tem contato com relatos que descrevem um pouco da construção de religiões afro-brasileiras, em como os africanos trouxeram a espiritualidade com eles e como se agarraram a isso para sentir o que restasse de conexão com África.

Vou poupar muitos acontecimentos e pontos do livro, porque ele é realmente muito grande e também para não tirar algumas surpresas que a obra oferece ao leitor. Mas de um modo geral é uma obra-prima da literatura brasileira e com um grande valor histórico, já que são relatos verdadeiros sobre as vivências de Kehinde no Brasil. São profundas ESCREVIVÊNCIAS, como diz Conceição Evaristo. Digo sem titubear que 'Um Defeito de Cor' foi o melhor livro que já li na minha vida. Entendo as pessoas negras que preferem evitar o contato com uma história tão dolorosa, porém enxergo como uma obra fundamental para lermos, principalmente porque é uma das poucas vezes em que essa história tão absurda e violenta de exploração de corpos negros foi contada pelo ponto de vista de uma pessoa negra.

Acho que 'Um Defeito de Cor' se tornou um livro especial pra mim por me fazer enxergar acontecimentos históricos de Salvador – e a cidade em si – de forma completamente diferente da que eu enxergava antes. O livro tem informações e relatos importantíssimos sobre os desdobramentos da Revolta dos Malês, na qual Luiza Mahin foi uma pessoa fundamental para que as coisas acontecessem, apesar de ser pouquíssimo lembrada pela historiografia.

As descrições sobre a cidade do Salvador, capital da Bahia, e o cotidiano das pessoas que aqui viviam foi muito importante para mim. Perceber que quase nada mudou sobre quem ocupa o Centro da Cidade enquanto morador e enquanto trabalhador, a estrutura das casas que remontam o período colonial, a forma como os brancos moradores dos bairros nobres do Centro só OLHAM para pessoas negras que estão por ali, como se fossem corpos estranhos caso não estejam em papéis subalternizados... Enfim, quando tive contato com descrições sobre minha cidade, realmente me vieram diversos pensamentos e indignações com o fato da cidade mais negra fora do continente africano continuar sendo um ambiente hostil para pessoas pretas.

Eu poderia passar horas falando e refletindo sobre acontecimentos desse livro, mas é uma experiência que jamais conseguiria passar com veracidade aqui pra vocês. Recomendo muito essa leitura para quem quiser conhecer mais sobre a nossa própria história e tiver peito e psicológico para encarar essas mais de 900 páginas cheias de reviravoltas e relatos extremamente delicados sobre a situação da população negra no Brasil colonial.

Ana Maria Gonçalves nos presenteou com esta obra, que deveria estar entre os livros clássicos da literatura brasileira!

Título: Um defeito de cor
Autora: Ana Maria Gonçalves
Páginas: 952
Gênero: Romance
Editora: Record

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